Primavera

A chegada da primavera sempre foi bastante aguardada por toda a minha família por um motivo: temporada de alcachofra! 

Desde quando eu era bem pequena, minha avó paterna cozinhava para mim alcachofras recheadíssimas, pelas quais eu rapidamente me apaixonei. Em sua ausência, quem fazia era o meu pai, somente na água com sal e azeite. Minha mãe, não tão chegada à iguaria, tratou de aprender a rechear e, quando mudamos para o interior, era ela quem fazia. Até que aprendeu a gostar e muito. 

Assim, os anos passavam à espera da estação das flores, à espera dessa flor que, muito nova, aprendi a saborear e que, hoje, além de certamente ser minha comida favorita, é o prato que mais me aquece o coração, por trazer à memória tantas lembranças boas da minha família e da minha infância. 

No que diz respeito à alcachofra, somos conservadores: nada de cortar as brácteas (ou escamas, ou pétalas), nada de deflorá-la para chegar à base, a qual chamamos respeitosamente de coração. Consumimos alcachofras inteiras em um ritual sagrado: pétala por pétala, das mais grossas e amargas às mais finas e delicadas. Provamos o recheio com garfo ou com as próprias escamas como colher, unindo sabores. Removemos as fibras e, aí sim, chegamos ao coração. 

Nem o talo escapa: cozinhamos junto e comemos. A água do cozimento também é reaproveitada como caldo vegetal para outras receitas ou para cozinhar arroz. 

Seu cozimento é lento. Eu, pequena e ansiosa, ficava atrás da minha mãe para ver se já estava pronta. Testava se as pétalas já estavam se soltando facilmente da base. Ficava, durante todo o período em que as alcachofras estavam na água, sobre o fogo, em panelas enormes que minha mãe levava para casa, do trabalho, somente para isso, hipnotizada pelo aroma que se misturava ao do recheio que ela cuidadosamente preparava. 

Essa espera e a paixão familiar renderam algumas histórias. A minha preferida é a de quando, já adolescente, preparei junto com a minha mãe o recheio para as alcachofras na padaria que tínhamos àquela época. 

Era dia de culto e nós esperamos que elas ficassem prontas para desligar o fogo e armazená-las de maneira adequada, para consumir no dia seguinte… 

Mas quem disse que nós esperamos até o dia seguinte? 

Essa é uma daquelas memórias que, quando se pensa muito, dá para praticamente ver a cena em outra perspectiva e é exatamente isso o que eu vejo: minha mãe, meu pai, meu irmão e eu em pé ao redor de uma mesa industrial de inox nos fundos da padaria devorando uma e depois duas (talvez três? Minha memória não vai tão longe, mas não duvido de nós.) alcachofras com os ponteiros do relógio correndo.

Também não lembro se chegamos a ir à igreja naquela noite, mas tenho certeza de que Deus nos perdoa caso tenhamos deixado de estar lá. 

Há cinco anos, deixei a casa do meu pai no interior e vim para a metrópole estudar. No primeiro ano, tive a surpresa de encontrar alcachofras no sacolão que eu ia bem perto do prédio onde morava e, nos anos seguintes, minha surpresa e reação foram exatamente as mesmas. Todo ano, também, uma foto e um textinho nas redes sociais sobre como esse alimento é importante para a minha história e memória com a minha família. 

Já tinha perdido as esperanças de encontrar alcachofras bonitas e acessíveis neste ano em que poucas coisas estão bonitas e, mais difícil ainda, acessíveis. Mas aí, no último sábado, descobri que o sacolão onde eu costumava encontrá-las faz entregas aqui no bairro onde moro hoje, com meu companheiro, e que os preços, inclusive, estão bem abaixo do que nos anos anteriores. 

Neste exato momento, minha casa está tomada pelo cheiro suave da alcachofra cozinhando na água temperada apenas com azeite e sal (e me dei conta agora de que esqueci de colocar o alecrim, que nunca falha em deixar tudo ainda melhor). Cheiro que me faz reviver aqueles momentos e mantê-los vivos, para sempre, dentro de mim. 


Para mim, comida é isso. Tem um imenso poder de manter coisas, lembranças e até mesmo pessoas vivas. Alcachofra, para mim, é isso. Minha infância e minha família eternizadas.

Quero saber de você, também. O Orgânico do próximo mês será sobre comida e memória. Você pode me contar sua história aqui nos comentários ou no meu e-mail (nilamaria12@gmail.com) e me ajudar a escrever a próxima edição. Qual comida manteve uma pessoa querida ou um momento feliz vivo para sempre?

De volta à estrada

Começou em algum ponto, é claro, e também é claro que eu não sei dizer quando foi. Sei precisar, mais ou menos, sem muita certeza, quando foi que voltou. Escutando um podcast ou participando de uma reunião com velhas e novas amigas, ambos os episódios tratando do mesmo assunto, senti reacender em mim uma chama que em momento algum apagou, mas ficou lá, no escuro, quase-vácuo, tremulando, teimando em seguir acesa. Repeti algumas vezes que tinha esquecido de como era bom, gostoso – usei essa palavra, mesmo – falar de comida. Como isso tinha tanto a ver com o que eu sou. 

É importante dizer que, nesse momento, eu estava preocupada. Tinha um tempo que eu não sabia direito quem ou o que eu era, onde estava, aonde exatamente queria chegar; minha angústia era me perder, e é de conhecimento de alguns que eu tenho certa dificuldade de me localizar quando perco o rumo que estava seguindo. Então, entendi o exato instante em que a faísca disparou e deu ânimo à pequena chama como um sinal. 

E comecei a buscar. Na busca, conheci alguns nomes, comprei dois livros, uma faca, fiz uma massa de pizza e uma polenta com cebola caramelizada, e me deparei com um curso que me fez quase ter certeza de que, agora sim, eu estava novamente na estrada. Logo na primeira aula, eu soube. Anotei coisas desenfreadamente, sem querer perder qualquer informação, e entre todas as anotações que fiz, a lápis, escrevi: às vezes o lugar aonde a gente quer chegar é o lugar de onde a gente nunca devia ter saído

Porque outras vezes eu já tive muita certeza de onde eu queria estar e de que esse lugar era exatamente aqui, neste blog, falando sobre comida. É bom ver as coisas pelo retrovisor porque parece uma distância segura para entender por que não estava funcionando em outros tempos, e tudo o que aprendi da vida e sobre estar pronto ao longo dos últimos quatro ou cinco anos me faz estar mais segura sobre, agora sim, estar pronta. 

Na segunda aula do curso, a Flávia nos encorajou a desenvolver um projeto pessoal. A respeito disso eu já estava pensando desde o fim do primeiro sábado. Com uma insatisfação contínua em relação às novas regras que os textos jornalísticos têm de seguir para serem lidos pelo maior número de pessoas possível, para agradar algoritmos, alcançar as métricas desejadas, decidi que queria escrever como eu gosto de escrever, assim, de um jeito solto, sem me preocupar com headlines, keywords, link building e todos esses anglicismos que, sinceramente, tiram a minha paz de segunda a sexta-feira. 

E no domingo nasceu, dentro de mim, o Orgânico: uma newsletter que vai chegar à caixa de entrada de quem quiser ler uma vez por mês de um jeito tranquilo, exatamente como um envelope contendo uma carta chega à caixa do correio. Minha proposta é justamente essa: um material orgânico sobre o tipo de alimentação em que eu acredito, sem veneno, acessível e saborosa para todos – alimento sem agrotóxico e conteúdo sem algoritmo. Na semana seguinte, enquanto sovava um pão que não ficou como eu gostaria que tivesse ficado, lembrei de anilamesa e decidi retomar as atividades neste espaço. Exatamente do mesmo jeito: sem a preocupação de agradar os códigos e tentar chegar à primeira página do Google; apenas fazer o que, tenho repetido incansavelmente, eu mais gosto de fazer, que é escrever. Escrever sobre comida com calma, me divertindo, percorrendo caminhos que ainda não tive a oportunidade de trilhar no jornalismo, sem prazos, sem pressão. 

E aqui estou. Aqui estamos. Sejamos todos bem-vindos de volta.

Alimento de verdade? 

Quinta-feira, 12 de outubro de 2017. Dia da Criança. Dia de Nossa Senhora de Aparecida. De Milão, João Dória Júnior, prefeito do principal centro financeiro e corporativo da América do Sul e cidade mais populosa do Hemisfério Sul, anuncia o programa Alimento para Todos.

A medida consiste em distribuir às populações carentes alimento produzido a partir de produtos próximos à data de validade, que seriam jogados no lixo.

Olhando assim, sem se aprofundar, nos faz pensar que parece ok. Dá pra pensar em sopa com alimentos que não são bonitos o suficiente pra vender no mercado, sei lá. Eu gostaria, na verdade, de pensar que é disso que se trata.

Mas não é. Trata-se de grãos sólidos feitos de comida velha. A aparência é de ração. Sabe? Ração de cachorro. “Alimento” insosso, feio, sem graça, sem sabor pra ser doado para seres humanos em situação de fome.

(Rosanna Perroti/Divulgação)

Parte da internet fechou os olhos. Outra aplaudiu, afinal, é melhor do que deixar passar fome. Uma terceira, como eu, se revoltou.

Não estou aqui para rebater comentário de portal nem para repetir a opinião de tantos que pensam como eu, mas vou falar o que eu penso.

Eu me apaixonei pela culinária e pela gastronomia ao longo do último ano e meio. Durante esse tempo todo aprendi muita coisa, li artigos, livros, assisti a vários documentários e todos me levaram a uma coisa que sempre esteve dentro de mim: a consciência de que comer é um ato político, social e cultural. Fazer uma refeição é mais do que encher a barriga. Se alimentar não é só mastigar e engolir.

Comer deve ser uma experiência. Mais do que somente o paladar, todos os sentidos devem ser exercitados ao comer. O olfato é extremamente importante na hora de de alimentar, o tato ajuda a sentir a textura do alimento, e os olhos são sempre os primeiros órgãos a ser despertados antes de comer. Pare e pense. Não é assim?

Agora, o que eu coloco em questão é: é possível ter uma experiência sensorial completa ao comer um granulado desidratado?

Você não sabe dizer, porque não vai ter de depender do programa da Prefeitura de São Paulo para sobreviver. E nem eu. E é este o ponto: a gente não liga quando não é com a gente.

Mas por que as famílias em situação de pobreza não podem ter a mesma experiência que eu e você ao fazer uma refeição?

O Brasil é um país imenso e possui a maior área apropriada para o plantio de todo o mundo. Nosso solo é fértil, nosso clima é bom. Temos variedades de frutas, verduras, legumes, tubérculos, imensas. E por que não é esta a comida que vai alimentar as famílias em situação de pobreza, mas um alimento processado, feio, sem gosto, sem graça?

O que tem por trás de tudo isso?

Fica pra depois. Por ora, tente apenas ingerir a indignação junto comigo.

Outra história de superação

Pouco antes das férias do meio do ano passado, chamei meus amigos pra jantar em casa. Decidi assim, em cima da hora que ia fazer nhoque, sem nunca ter feito antes, o que foi um erro terrível. Acreditei que era fácil e que conseguiria fazer mas, meu Deus, de onde eu tirei que era fácil fazer nhoque caseiro?

Fracassei. Falhei miseravelmente.

A massa não deu liga de jeito nenhum, não importava o quanto de farinha eu colocasse e lá se foi um quilo de batata. Não gosto nem de lembrar. Desvio o assunto quando um deles menciona esse trágico episódio.

Eu exijo muito de mim na cozinha e tenho uma dificuldade imensa de tolerar meus fracassos. Fico mal, triste de verdade, além da conta. Naquele dia, inclusive, me tranquei no banheiro da minha própria casa pra chorar. Eu sei, todo mundo erra e os erros são oportunidades pra aprender. Mas falar é fácil!

Aí, hoje me deu uma vontade absurda de comer nhoque, unida à dúvida comum sobre o que eu deveria almoçar. Decidi que ia tentar, dessa vez, com batata doce.

E não é que deu certo? Deu muito certo.

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Enquanto eu moldava o rolinho comprido e fino pra cortar o formato do nhoque senti uma alegria indescritível. Aquela alegria das pequenas coisas, das pequenas conquistas. Pequenas alegrias da vida adulta!

E eu fiz meu nhoque. Fiz minha primeira massa caseira e matei minha vontade. Além disso, superei o fantasma do nhoque fracassado de 2016.

Agora já posso chamar meus amigos de novo pra comer nhoque de verdade.

Volto a dizer que uma das coisas mais importantes que a cozinha representa pra mim é superação.

Pão

Cozinhar significa muitas coisas pra mim, e uma delas é superação.

Sempre tentei fazer pães, mas nunca dava certo. Eu perdia o ponto da massa na hora de sovar, mesmo seguindo a receita à risca (mais tarde descobri que era esse o problema), e quando não era isso, ele não crescia ou alguma outra coisa dava errado.

Me dei bem algumas vezes com receitas de pão de massa mole, que não precisa sovar. Aquelas que basta misturar tudo, colocar na forma e assar. Ficava bom e bonito e eu nem acreditava que havia saído das minhas mãos. Era por essas receitas que eu buscava.

Mas um dia elas pararam de aparecer. Eu pesquisava e pesquisava e nunca mais achava aquelas receitas fáceis que davam certo pra mim. Precisava colocar a mão na massa.

E por que não?

Em uma visita à livraria conheci o Larousse dos pães e me apaixonei. Prometi que um dia voltaria para busca-lo e algum tempo depois comprei pela internet em uma promoção da Amazon ou da Saraiva. E me apaixonei pelas fotografias, pela história, pelas instruções e por cada receita.

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Mas acabou que encostei na minha estante porque, imagina, eu nunca seria meramente capaz de fazer um fermento natural.

Desanimei até de fazer pão.

Mas aí voltei a tentar. E foi dando certo. Comecei a adaptar as receitas que via, e foi dando certo. Entrei em grupos no Facebook e a cada dia fico mais encantada com essa arte que é a panificação, e com mais vontade de aprender e de fazer. Fazer dar certo.

E está dando certo.

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Há algumas semanas fiz um pão que a massa não crescia de jeito nenhum. Pedi ajuda à minha mãe e demos um jeito de fazer o pão crescer. Terminei a noite com um pão grande e um pão de hambúrguer.

Essa semana fiz dois pães enormes com a nova técnica de fermentação química que aprendi no episódio do pão que não crescia. Creio que tenham sido os melhores pães que já fiz. Até hoje, quem sabe.

Também essa semana em um dos grupos que participo publicaram vários vídeos de sovas de diferentes tipos de massas, das mais secas às mais hidratadas e eu fiquei pensando que jamais uma massa minha seria tão elástica e macia quanto a daquelas pessoas.

Pois hoje fiz uma massa que ficou igualzinha a de um dos vídeos e eles estão na segunda fermentação aguardando ir pra o forno.

O que me fascina é que pão é ciência pura. O que me fascina é pensar que minhas mãos e o calor delas podem transformar uma mistura de ingredientes em um alimento tão poderoso.

Desencostei meu Larousse hoje para pegar o passo-a-passo da fermentação natural. Em um cantinho da minha cozinha a vida começa a nascer a partir de 20 gramas de farinha, 20 gramas de água e 5 gramas de mel.

A razão principal por que eu amo estar na cozinha é que lá eu me supero a cada dia. Meus medos, meus erros, minhas dúvidas. Vai tudo ficando pra trás e eu transformo cada uma dessas coisas em aprendizado.